Desde a Constituição de 1988, tanto o Judiciário
quanto as Funções Essenciais à Jurisdição experimentaram avanços, mas em
diferentes graus. Comparada ao Judiciário, ao Ministério Público e à Advocacia
Pública, a Defensoria Pública sempre foi tratada como o “patinho feio” do
sistema, a última a merecer estruturação e investimentos, para o adequado
desempenho de seu múnus.
A EC 45/2004 operou uma grande reforma do sistema
jurisdicional, nele incluindo importantíssima norma, que conferiu autonomia
financeira e orçamentária às Defensorias Públicas Estaduais. Uma instituição
que litiga quotidianamente contra o poder público, em favor do cidadão
necessitado, não pode depender desse mesmo poder público para sustentar-se
financeiramente, expandir-se, atingir os grotões do país, nem dele sofrer
qualquer tipo de ingerência, do contrário fica frustrada sua razão de ser.
Jamais interessará ao poder central bem estruturar uma instituição que a ele se
contraponha.
Ocorre que a EC 45/2004 conferiu autonomia financeira
e orçamentária só às Defensorias Estaduais, e não à Federal. O Executivo
Federal, à época, posicionou-se claramente pela manutenção da DPU sob as rédeas
do governo. Com isso, criou-se uma situação inconstitucional: era como se o
interesse do brasileiro necessitado dos serviços da Defensoria Pública da União
valesse menos do que o daquele dependente dos serviços da Defensoria Pública do
Estado. Nos debates parlamentares da época, o então Senador (hoje Ministro da
Casa Civil) Aloísio Mercadante prometeu que a autonomia da DPU seria aprovada
em breve, com o apoio do governo, empenhando sua palavra.
Em 2007, o Tribunal de Contas da União decidiu que a
DPU deveria contar com 1.200 membros para exercer minimamente sua função,
expedindo recomendação ao Executivo nesse sentido. A DPU não contava nem com
300 membros e não tinha atingido sequer as capitais dos Estados federados,
situação ocorrida apenas em 2008, com o 3.º concurso da instituição em 14 anos.
Hoje, a DPU tem cerca de 540 membros em atividade...
A contribuição da EC 45/2004 foi finalmente
complementada pelo Congresso Nacional com a EC 74/2013. Esta, por sua vez,
estendeu à Defensoria Pública da União a autonomia orçamentária e financeira já
reconhecida às Defensorias Públicas Estaduais. Em 2014, o Congresso Nacional
aprovou a EC 80/2014 e conferiu aos Estados e à União o prazo de 8 anos para
lotar um defensor público onde houver um juiz. Para isso, incumbiu de iniciativa
legislativa os Defensores Gerais, permitindo-lhes regulamentar a carreira dos
defensores públicos e as carreiras de apoio à instituição. O governo Dilma
Rousseff, a despeito das promessas do então Senador e hoje Ministro, sempre se
posicionou contrariamente tanto à EC 74/2013 quanto à EC 80/2014, enfrentando
seguidas derrotas no Parlamento, vez que a própria base aliada era (é)
entusiasta das potencialidades democráticas da Defensoria Pública. Unido, da
oposição à situação, exceto o governo, o Parlamento, órgão realmente empenhado
em estender o serviço de assistência jurídica aos pobres no país, trabalhou
para o fortalecimento da Defensoria Pública como política de Estado
constitucionalizada, e não capricho desta ou daquela gestão.
Hoje, 10/04/2015, a presidente da República, por meio
da Advocacia-Geral da União, protocolou a Ação Direta de Inconstitucionalidade
5296, argumentando vício de iniciativa da EC 74/2013 e requerendo medida
liminar urgente para suspender sua eficácia, apesar de vigente há quase dois
anos. A PEC que resultou na EC 74/2013 foi deflagrada por 1/3 dos Senadores,
com lista encabeçada pela Senadora Vanessa Grazziotin, PC do B/AM, da base do
governo, e foi aprovada à unanimidade em ambas as casas legislativas. A tese
estapafúrdia da ADI é de que autonomia se inclui no regime jurídico do servidor
público, para cujo tratamento se exige iniciativa de lei exclusiva do
Executivo, não podendo o Legislativo propor Emenda Constitucional a respeito.
Ora, em primeiro lugar, não há restrição temática de
iniciativa para Emendas Constitucionais. Os legitimados à sua propositura o são
a título universal, podendo suscitar alterações no texto da Constituição em
qualquer matéria, resguardados os limites do art. 60, § 4.º. O que o STF veda,
por iterativa jurisprudência, é o uso fraudulento da Emenda à Constituição para
que o Parlamento contorne a iniciativa privativa do Executivo em determinadas
matérias. Aqui, o segundo ardil do governo: a definição de autonomia da DPU
como parte do regime jurídico de servidores públicos beira a má-fé. A autonomia
de órgãos e instituições constitucionais não é tema de regime jurídico de
servidores, mas de organização política do Estado. A organização política do
Estado é matéria constitucional por excelência, ao lado dos direitos
fundamentais. A engenharia de Estado e o fortalecimento de Instituições estão a
cargo do poder constituinte reformador, no Parlamento, e não dependem de
qualquer iniciativa do Executivo. Confundir esses dois temas é absurdo.
Mais: se o titular do poder constituinte reformador, o
Parlamento, entende por conferir autonomia a determinada instituição em face do
Executivo, para que ela melhor exerça sua função, não há sentido em exigir que
o próprio Executivo seja o árbitro primeiro dessa questão, com a tese da
iniciativa privativa para PEC. Se assim o fosse, a engenharia de Estado e a
organização política-constitucional da República estariam a cargo do Executivo,
não do Parlamento, a indiciar uma perspectiva centralizadora e nada democrática
do assunto...
E o que dizer das inúmeras Emendas à Constituição, de
iniciativa do Executivo e do Legislativo, que alteraram a conformação do
Judiciário e do Ministério Público, também autônomos? Serão todas arrastadas
para a vala da inconstitucionalidade, face ao mesmo vício? Eis o caso, entre
outros, da EC 45/2004, de iniciativa do Parlamento: é o fim do CNJ, do CNMP,
das novas atribuições do Judiciário Trabalhista? Ao mirar o enfraquecimento e o
sepultamento da DPU, a ADI 5296 consagrará argumento para nulificar todas as
reformas do sistema jurisdicional brasileiro nos últimos vinte anos?
A atuação da DPU interessa ao governo. Nos discursos.
Em discurso de 16/10/2012, a presidente Dilma Rousseff anunciou aumento da
Defensoria Pública da União para 200 sedes ou cidades, até 2015
(http://www.conjur.com.br/2012-out-17/notas-curtas-dilma-anuncia-ampliacao-defensoria-publica-uniao).
Em 2015, não há mais do que 80 sedes... Já ao discursar na cerimônia de
promulgação do novo CPC, a presidente da República destacou que eram pontos
fortes do texto a expansão da assistência jurídica aos necessitados e o
fortalecimento da Defensoria Pública
(http://blog.planalto.gov.br/novo-codigo-significa-mais-justica-para-todos-num-pais-menos-desigual-e-mais-exigente-afirma-dilma/).
No entanto, nenhuma novidade sobre a estrutura e o desenvolvimento concreto da
Defensoria Pública há, nem poderia haver, no CPC. O discurso retórico de S.
Exa. não faz mais do que tirar proveito, sem contrapartida, da boa imagem da
Defensoria Pública, a instituição mais bem avaliada do sistema jurisdicional
brasileiro, segundo pesquisa promovida pelo CNMP
(http://www.adpeto.org.br/site/defensoria-p%C3%BAblica-%C3%A9-institui%C3%A7%C3%A3o-mais-bem-avaliada-no-funcionamento-da-justi%C3%A7a-no-brasil).
O que se vê, lamentavelmente, é que o governo Dilma
Rousseff, inimigo figadal do crescimento da DPU e da assistência jurídica aos
necessitados no Brasil, para além do mero discurso, comporta-se, neste tema,
como soldado que morre atirando. Derrotado seguidas vezes no Parlamento e sob a
orientação jurídica equivocada de um Ministro AGU em dificuldades com a gestão
da própria carreira (http://unafe.org.br/index.php/nota-publica-21/), de
membros justificadamente insatisfeitos com anos de desvalorização, vale-se de
todos os meios institucionais, agora recorrendo ao STF, para que a DPU não
avance, não se desenvolva, não abra novas sedes, não preencha os mais de 700
cargos vagos, não tenha carreira de apoio, não seja autônoma e, com isso, não
atinja os que dela mais precisam! E, ao contrário do que os maus assessores de
S. Exa. possam afirmar, as vítimas maiores desse fatídico tiroteio não são os
defensores federais que, de atestada competência por exigente concurso público,
se podem voltar a qualquer tempo para outras carreiras públicas ou privadas,
mas os dependentes do serviço de assistência jurídica integral, gratuita e de
qualidade no Brasil, grande parte dos quais sem vislumbre de direitos para além
de bolsas de subsistência... aqueles mesmos que a signatária da ADI
propagandeia priorizar em seu governo...
Luiz Henrique Gomes de Almeida
Prêmio Barão do Rio Branco na FDUFMG (1.º/2009)
Defensor Público Federal em Belo Horizonte
Márcio Melo Franco Júnior
Especialista em Filosofia Contemporânea pela PUC Minas
Defensor Público Federal em Belo Horizonte
Vinícius Diniz Monteiro de Barros
Especialista em Direito Público pela UCAM, Mestre e
Doutorando em Direito Processual pela PUC Minas. Professor da PUC Minas.
Defensor Público Federal em
Belo Horizonte
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